PT

EN

CANA-DE-AÇÚCAR

Fotos em Movimento ou O Saber das Fotos

(Paula Pires)

Como se fosse um mar, o verde ondula a se perder no horizonte. Verdes mares de gramíneas de suave aparência, a esconder a defensiva aspereza das folhas lanceoladas e imponentes. Seu fruto doce fez a riqueza do lugar. Ao longo dos séculos, o fio de açúcar extraído do ouro verde vem tecendo parte de nossa memória cultural.

Nesse cenário, mirar a figura humana — ponto difuso em tamanha plantação — e perceber seu sentido — marco simbólico na linha do tempo — requer arte.

Ah, a arte de saber ver! Do olhar transgressor que perpassa o foco e desnuda a estática aparência. A arte de fotografar a vida.

Pelos olhos do observador as lentes tudo registram. Revelam o passado do futuro, hoje, no presente. Afinal, o “clic” fotográfico longe está de se esgotar em si. A imagem flagrada fixa um momento plural que traz consigo toda uma história. Como um código de múltiplos significados, uma foto sintetiza muitas informações.

A paisagem, colorida pelo verde-cana, incorporou definitivamente o homem no imaginário do lugar. Ainda no cenário atual, lá está ele. A imagem do trabalhador que caminha pela longa estrada no meio do canavial, simulacro da temporalidade, pode bem ser o portal que nos separa do esquecimento; ela nos permite vislumbrar paisagens imaginárias, mesmo quando a realidade é de ruínas.

Quando o primeiro engenho de açúcar foi instalado no Nordeste, Nossa Senhora da Ajuda foi invocada para que garantisse o sucesso da empreitada e protegesse a labuta daquelas tantas almas sofredoras. Eram tempos difíceis; corria o ano de 1535. Deus, que era o de todos, ouvindo as preces proferidas em diferentes línguas, palavras e intenções, autorizou as bênçãos da Santa, que logo se espalharam por toda a região. Assim a riqueza do açúcar se fez. E pelos ciclos dos séculos, foi cunhando seu lugar na cultura brasileira.

•••

Uma lenda nordestina

Dizem que Jesus Cristo passava por uma estrada em um dia de sol muito forte e que por isso ele morria de fome e de sede. Em meio à estrada ele avistou um canavial e resolveu sentar-se numa sombra entre as folhas, refrescando-se do calor, descansando, chupando os gomos da cana e enfim, matando sua fome. Ao sair, abençoou as canas, prometendo que delas o homem havia de tirar um alimento bom e doce.

No outro dia, na mesma hora, o diabo saiu do fogo do inferno com os chifres e o rabo queimados. Galopando pela estrada, foi dar no mesmo canavial. Mas, desta vez, as canas soltaram pelos e o caldo estava azedo e queimou-lhe a garganta. O diabo, furioso, prometeu que da cana o homem tiraria uma bebida tão ardente como as caldeiras do inferno.

É por isso que da cana se tira o açúcar, bênção de Nosso Senhor, e a cachaça, maldição do diabo.

•••

A ambivalência das bênçãos e maldições ficou para trás, lá no tempo em que as crendices corriam soltas pelos quentes ares dos canaviais. Ao açúcar e à cachaça juntaram-se novos produtos, cada vez mais atendendo aos desígnios dos homens e às necessidades do século que se inicia. Nos novos tempos a mecanização do campo acompanhou o ritmo da industrialização. As marcas deixadas pela colheita trazem os rastros das rodas da modernidade que agora sobrepujam as pegadas dos homens no eito.

No entanto, no mesmo espaço, diante de uma realidade inovadora, vemos máquinas de aparência estranha incorporadas à paisagem das tradições imorredouras de um passado distante; a prática sabedoria dos antigos, conjugada com os meios desenvolvidos pela produção industrializada. Tradição convive com inovação.

 Nas transações modernas da era globalizada — versão atualizada das “mercancias” de outrora? — o açúcar brasileiro ganha a frente dos mercados em todo o mundo. Gira a roda do tempo e, como há séculos, a riqueza do açúcar volta a ser uma das grandezas do país.

Arquivo de tudo, a fotografia é o espaço peculiar que mantém o registro da lembrança e o trânsito do não-esquecimento, sem comprometer a liberdade do olhar e do querer ver — saber ver com o coração.

Mudam os tempos, mudam os homens. Só os verdes canaviais continuam ondulando incansavelmente ao vento. As fotos, silenciosamente, contam mais esta história.

Ricardo Junqueira